A paranaense Débora Gonçalves Ribeiro Dias está prestes a concluir o mestrado junto ao programa Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, cuja defesa está prevista para agosto. Luana de Oliveira Albuquerque se prepara para uma cirurgia de implante coclear (dispositivo eletrônico introduzido cirurgicamente atrás da orelha) e, acompanhada pelos pais Márcia e Marco Antonio, segue à risca as orientações de fonoaudiologia e discute exames pré-operatórios no ambulatório de Saúde Auditiva do Hospital de Clínicas (HC). Em comum, Débora e Luana não apenas rumam a uma nova etapa de vida, mas vencem barreiras: ambas são surdas de nascença e contam com profissionais de Libras (Língua Brasileira de Sinais) para acompanhá-las na universidade, seja na esfera acadêmica ou assistencial.
Há quase duas décadas a instituição rompe o silêncio dos surdos e promove comunicação. Até 2014 foram ações informais e até anteriores ao reconhecimento da Língua como oficial no Brasil, em 2002. Mas, há três anos, a tradução e a interpretação de Libras foram institucionalizadas por meio da criação da Central TILS (Central de Tradutores e Intérpretes de Língua Brasileira de Sinais) no âmbito da Diretoria de Logística e Infraestrutura para o Ensino (DLIE) da Pró-Reitoria de Graduação (PRG). A proposta inicial era atender alunos de graduação e pós-graduação. Mas as ações foram além: o apoio aos estudantes ganhou suporte audiovisual, a equipe passou a promover cursos introdutórios de Libras para a comunidade interna e externa, participa constantemente de traduções ao vivo em eventos e presta assistência a pacientes na área de saúde. De olho em instituições modelo de acessibilidade para a comunidade surda, como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o grupo busca aprimoramento e replica conhecimentos fora do Brasil.
Em consonância com a Lei nº 13.146/2015, que reconhece a diferença linguística das pessoas surdas e a necessidade da mediação do intérprete no ensino, a Central é formada por quatro profissionais. Andréa Rosa, coordenadora, pedagoga e tradutora de Libras, tem como parceiros nessa empreitada as tradutoras e intérpretes Lilian Ferreira e Juliana Fernandes, e Clóvis Sousa, profissional multimídia. Há duas semanas eles estão em um novo espaço, no segundo andar do Ciclo Básico II, onde se organizam para cumprir uma agenda que inclui apoio ao ensino e relações com a sociedade. Uma ilha de edição e um pequeno estúdio integram a sede, já que a demanda por vídeos com tradução para pessoas surdas, seja nas próprias aulas ou na comunicação institucional, é crescente. “No Brasil são 12 milhões de pessoas com alguma deficiência auditiva. Só em Campinas, são seis mil pessoas e metade delas se comunica por Libras. Além disso, a tradução vem ganhando cada vez mais visibilidade, o que claramente implica aumento do interesse nesse aprendizado”, afirma Juliana Fernandes, que é formada em Letras Libras e recém-contratada pela Unicamp.
A acessibilidade começa no próprio Vestibular, pois quando há candidatos surdos inscritos, a equipe traduz as instruções e fica, durante todo o período de realização da prova, à disposição dos candidatos. Ao ingressar, o aluno tem acesso a Libras assegurado durante a permanência no campus. Em diversas unidades de ensino e pesquisa, professores já se acostumaram com a presença das intérpretes dentro das salas de aula e com o Clóvis, que filma a tradução para posterior envio ao aluno surdo, facilitando a abstração dos conteúdos. Atualmente, além da mestranda Débora, a equipe atende dois doutorandos da Faculdade de Educação, um mestrando do Instituto de Computação e três pós-graduados. “Os conteúdos são densos, como, por exemplo, engenharia de software e teorias da educação. Por isso é precisar estudar muito antes das aulas e, em alguns casos, não há símbolos correspondentes. Podemos usar a datilologia ou pedir ajuda ao professor na correspondência dos termos técnicos”, explica Lilian Ferreira, tradutora há quatro anos.
A pesquisa de Débora
A paraense Débora está entre as pessoas que conseguem estudar com autonomia graças ao apoio de TILS. A surdez congênita da estudante de 33 anos não a impediu de cursar duas faculdades e mestrado. As reuniões de orientação, sob responsabilidade da professora Ivani Rodrigues, são feitas a três, pois uma ou duas intérpretes – que se revezam – a acompanham em todo o diálogo. E é assim desde a época que começou as aulas, em 2016. Aliás, Ivani, lembra que a acessibilidade foi anterior.
“Preparamos uma prova inclusiva, pois respeitamos as questões linguísticas e o português como segunda língua”, explica a especialista, que concorda que a presença do surdo no ensino superior é uma novidade. Débora, que é pedagoga e também fez Letras Libras, viaja semanalmente, pois mora na cidade de Cornélio Procópio (PR). Sua pesquisa testa um Avatar aplicado ao ensino de surdos, desenvolvido na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) pelo professor José Mário de Martino, que traduz textos de português para Libras. “Consultei alunos de uma instituição que experimentaram o software, a fim de propor subsídios para melhorar ainda mais a tecnologia”, explica Débora. Ela destaca a gravação das aulas em Libras como um diferencial. “Com os vídeos, consegui rever os conteúdos em casa, fazer anotações e melhorar meu desempenho no curso”, comemora a estudante.
O atendimento aos surdos no HC
A mediação entre pacientes surdos e o médico em consultas no HC é recente. Há alguns meses as intérpretes frequentam os departamentos de psiquiatria e imunologia, a partir das demandas que surgem do Serviço Social do Hospital. A assistência é mais um braço da equipe, disponível para todo o público da área de saúde, mediante agendamento prévio. “É necessário saber como passar a mensagem aos pacientes de forma sensível e precisa”, comenta Lilian. A paciente Luana, que deseja melhorar sua oralidade com pessoas ouvintes após o implante, comenta a importância da interpretação durante as consultas. “Eu me sinto mais segura, porque as informações são mais precisas e não perco detalhes importantes do tratamento”. Ela foi atendida pela fonoaudióloga Daniela Calil. “A Luana conseguiu compreender todo o prognóstico, tirar dúvidas e debater as possibilidades comigo”, afirma a especialista.
Educação inclusiva
A demanda pela educação inclusiva motivou a equipe a participar de projetos de extensão e cursos de Libras para professores da rede pública e para a própria comunidade interna da universidade nos últimos dois anos. As oficinas abrangem conhecimentos básicos. Das parcerias internas surgiu também a interpretação em tempo real para surdos na plateia e, às vezes, transmissões ao vivo de eventos institucionais. Ciência e Arte nas Férias, congressos de medicina, cerimônias da Reitoria, debates de candidatos a Reitor feitos pela Secretaria Geral e algumas solicitações do Diretório Central de Estudantes (DCE) fazem parte das solicitações já atendidas e exprimem o acesso amplo a diversas esferas acadêmicas.
Voltado ao público extramuros, está o projeto Extensão48, da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (ProEC), que divulga, por meio de jornalismo multimídia, iniciativas de extensão comunitária. “A tradução do conteúdo dos vídeos em Libras é gravada, editada e posteriormente inserida no produto final”, explica Clóvis. No ano passado, nove vídeos sobre História da África e História Indígena também tiveram a mesma linguagem, em um programa de extensão do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
As iniciativas levaram à conquista de três prêmios, um deles concedido pelo governo estadual, em 2017, sobre Ações Inclusivas da Secretaria Estadual de Pessoas com Deficiência, numa concorrência entre 150 projetos. Nos anos de 2015 e 2016, TILS teve reconhecimento da universidade por meio do Prêmio aos Profissionais da Carreira PAEPE, concedido a projetos de servidores não-docentes, ocupando lugar entre os dez indicados ao prêmio máximo de melhor iniciativa. Andrea está com viagem marcada em outubro para a Europa para intercâmbio em três universidades. “O aprimoramento internacional é importante para a equipe, que buscamos ampliar em breve com profissionais em audiodescrição e educação especial.” Para entrar em contato, escreva para tils@basico.unicamp.br ou ligue para (19) 3521-1442. O site é www.centraltils.prg.unicamp.br
Da missão à profissão
A prática da Língua Brasileira de Sinais enquanto profissão é recente no país. Poucas universidades oferecem cursos de formação, entre elas a UFSC, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Os cursos vieram depois do decreto de 2005, que instituiu a Libras como disciplina curricular na graduação em Fonoaudiologia, Pedagogia e Letras e, um ano depois, para todas as licenciaturas. O mesmo documento também regulamenta a obrigatoriedade do intérprete no ensino fundamental, médio e superior. Até então, esse papel era, conforme Andrea, uma “missão”. Ela mesma se encaixa nesse contexto por estar no ramo há mais de 20 anos, com traduções eventuais. “A maior parte dos intérpretes vem do setor de serviços, de uma trajetória empírica e assistencial”. Andrea critica esse estigma de atividade “messiânica”: “temos, acima de tudo, um papel institucional e técnico de estimular a autonomia entre as pessoas com deficiência, com planejamento e organização, indo além do conceito de ajuda.”
Da mesma forma, Juliana ressalta a complexidade da Língua Libras, que não é universal e não tem relação direta com a língua oral. Isto é, a língua gestual portuguesa e Libras não se conectam. Os sinais têm a ver com a comunidade surda de cada país e influências imigrantes. “No caso do Brasil, há correspondência com a língua francesa. Libras foi trazida em 1855 pelo professor francês Hernest Huet, que era surdo. Ele fundou a primeira escola para surdos do país, hoje o Instituto Nacional de Educação dos Surdos”, conta a tradutora. Ela destaca ainda a diferença entre aprender Libras como formação e como comunicação básica. “Uma coisa é você aprender para prestar um atendimento inicial ou emergencial ao surdo, outra é a interpretação continuada. Libras não envolve apenas gestos e alfabeto, ela precisa ser vivenciada e considerada nos seus diversos contextos”, analisa a intérprete, que também pontua sobre falta de profissionais qualificados no mercado.
Além da ética e da responsabilidade, a acessibilidade na universidade tem desafios específicos, já que a interpretação abrange imensa diversidade de temas de todas as áreas acadêmicas, o que torna o trabalho complexo por conta de termos e conteúdo. “Repertório cultural de um interprete precisa ser muito vasto e despido de qualquer preconceito, incluindo questões políticas, ideológicas, teóricas”, explica a coordenadora. O trabalho em saúde implica total sigilo e não exclui certo desgaste emocional. O preparo físico dos interpretes também é necessário, com alongamento, aquecimento, roupas e calçados confortáveis e hidratação.
Simpósio destaca acessibilidade na prática docente
Aberta ao público, a segunda edição do Simpósio “Educação Inclusiva no Contexto Universitário”, promovido pela PRG/Central TILS, será dia 16 de agosto, no auditório da FCM. A novidade é o foco na construção da identidade do professor com deficiência e desafios na trajetória acadêmica. Professores universitários de Portugal e de outras instituições brasileiras vão apresentar experiências. Diversos projetos, inclusive de física e química para cegos, estão na programação. Andréa salienta a total acessibilidade ao evento, desde a elaboração do site, que conta legibilidade para deficientes visuais e vídeos em Libras, para que todos possam fazer as inscrições. Orientação e mobilidade também estão previstas, com apoio de Fátima Mendes, pedagoga especialista em deficiência visual. O Laboratório de Acessibilidade de Biblioteca Central Cesar Lattes (LAB/BCCL) fará exposição e audiodescrição das conferências. “Integrar ações e propor diálogo entre todos que trabalham com acessibilidade no campus é fundamental para fortalecer a educação inclusiva”, conclui a pedagoga. Saiba mais: educacaoinclusiva.prg.unicamp.br
Publicado originalmente em:
http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2018/07/18/libras-no-contexto-da-educacao-inclusiva